sábado, 25 de julho de 2009

17 de setembro de 1838

O debate começa com o pronunciamento do deputado Ferreira Pena, contrário à Lei de Interpretação: acredita na boa vontade das assembléias e na competência e boas intenções dos presidentes de província. Prefere uma reforma do Ato Adicional e "estranha" o silêncio dos ministros da Coroa. Sugere que não querem eles dar a entender que influem na matéria, apesar de todos terem assento na Câmara. Pede que se pronunciem antes do final da terceira discussão. É contra o artigo 5, o artigo 8 e o artigo 9.

Paulino intervém afirmando que não entende porque a oposição a aspectos menores da Lei de Interpretação leva parlamentares a votarem contra todo o seu texto ou seus artigos fundamentais. A comissão encarregada da Interpretação entende que cumpriu o seu papel e ofereceu os remédios necessários para coibir as usurpações das assembléias provinciais:

Quando as novecentas e tantas leis que estão na comissão se acumularem com outras tantas, quando as usurpações das assembleias provinciais já não tiverem limite; quando a assembléia geral, a braços com tanta legislação sem a poder sequer rever, não puder mais conter as usurpações das províncias; quando a união do Império estiver quase a diluir-se, a consciência dos membros da comissão por certo que há de estar mais tranquila do que aqueles nobres deputados que houverem votado pela rejeição do projeto (numerosos apoiados) (Anais, pág 524)

Em seguida, Paulino examina outro ponto importante: o princípio político da interpretação. Todas as vezes que encontrou um artigo com dois sentidos, envolvendo um a reforma de outro artigo da Constituição, não julgado reformável, e outro que o conservava, adotou o segundo sentido. Estrito minimalismo legal, como se pode notar: a definição do federalismo dual pela Lei de Interpretação não poderia reformar a Constituição.

Por conta disso, a oposição à Lei de Interpretação afirmava que não se poderia reformar o direito das províncias legislar sobre empregos provinciais, direito reconhecido ao governo geral pelo artigo 102 da Constituição de 1824.

Paulino observa que segundo uma interpretação rigorosa de tal vedação, até os meirinhos deveriam ser nomeados pelo Poder Executivo. O Código de Processo, ao contrário, autoriza os presidentes de província a nomear os juízes dos órfãos, os juízes municipais e promotores (propostos pelas câmaras), e entregou aos juízes a nomeação dos oficiais de justiça. Nada disso, entende Paulino, representa uma reforma constitucional.

A hermenêutica adotada pela comissão responsável pela Lei de Interpretação recusa justamente o princípio do sentido literal: Ora, o sentido puramente literal é aquele que a comissão excluiu e adotou o que é conforme ao espírito do Ato Adicional e literal também. (pág 525). Uma interpretação literal entregaria todos os empregos públicos à discrição das províncias, o que produziria a dissolução e a anarquia.

Uma intervenção do deputado Silva Pontes permite a Paulino responder a outro argumento: muitas leis provinciais que invadiam as atribuições do governo geral eram úteis. Porque uma coisa convém, não se segue que seja conforme à lei, comenta. Ele também concorda que muitas dessas leis eram boas e conformes, citando o exemplo da lei de 14 de abril, aprovada pela Assembléia de Pernambuco. A questão não é essa. A questão é se essas leis cabem nas atribuições das assembléias provinciais, se são conformes à verdadeira inteligência que se deve dar ao ato adicional.

Nesse momento, Paulino enfrenta ainda outro argumento oposto à Lei de Interpretação: ela deveria ser precedida pela reforma dos Códigos e da organização do Judiciário. O trajeto correto seria exatamente o inverso. Apenas com a revisão do Ato Adicional seria possível dirimir dúvidas sobre a natureza dos "empregados de justiça" e essa abordagem já tinha sido usada para recusar a análise de um projeto do Senado sobre a qualificação dos jurados. Não havia consenso sobre a esfera de governo responsável por tal tipo de legislação.

Em seguida, Paulino vai descartando rapidamente emendas de menor alcance, como a natureza das leis criminais aplicadas aos magistrados. Recusa a comparação do parágrafo 7, do artigo 11 do Ato Adicional com a Constituição dos Estados Unidos. Essa última declara direitos; a primeira, as penas; nos Estados Unidos a medida é administrativa; no Brasil, ela é judicial, concluindo com várias observações que não podemos ouvir, anota o transcritor de seu discurso. Termina defendendo a atribuição dos presidentes de Província de negar sanção às leis provinciais.

Julgada a matéria discutida, é aprovada a supressão dos artigos 8 e 9 e o artigo aditivo do Sr. Silva Pontes. É adotado o projeto por grande maioria e vai à comissão de redação. O Sr. Presidente dá para a ordem do dia a mesma de hoje e mais a terceira discussão das propostas do governo sobre a provinciliazação das notas e estabelecimento do conselho naval. Levanta a sessão pelas 3 horas da tarde. (Anais, Sessão de 17 de setembro, pág 526).

domingo, 19 de julho de 2009

Alternância no poder e política imperial

Em meados da década de 1970, a sugestão de que o sistema político do Império provia um notável mecanismo para a alternância de partidos no poder, feita pelo professor José Murilo de Carvalho, soava como uma curiosidade. Justificava, no máximo, a metáfora do “teatro das sombras”, de valência condenatória. Toda política, afinal, pode ser considerada uma forma de teatro, reproduzindo sempre de forma imperfeita um conflito violento ou complexo demais para ser exposto à luz clara do dia.

Anos mais tarde, a experiência dos populismos eleitorais e seus teatros plebiscitários vieram mostrar que, ao lado do rito do voto, a substância do regime democrático requer proteção especial contra a tentação do continuísmo. Nos dias que vão, qualquer governo popular, beneficiado por algum ciclo econômico, bonança fiscal ou preços de commodities, sente-se autorizado a mudar a proteção constitucional expressa nos mandatos fixos e inelegibilidades. Alguns deles, incapazes de promover a revolução permanente, contentam-se com a promoção da baderna permanente. Pretendem fazer brilhar sua pálida racionalidade por meio da promoção das trevas.

No Brasil de 1840, o chamado Golpe da Maioridade evitaria por décadas que um partido triunfante usasse a ameaça da governabilidade para se perpetuar no poder. Declarando maior de idade o Imperador, por meio de uma conspiração parlamentar, deputados e senadores restabeleceram a independência do Poder Executivo, disfarçada na figura do Poder Moderador. A natureza e a substância deste foi objeto de elegantes dissertações, concebidas por penas argutas, mas basta um exame das motivações desses debates para a compreensão imediata do que estava em jogo: as razões para a sucessão dos gabinetes.

O “governo por arbitragem” praticado por Pedro II causava desconforto justamente porque funcionava: os partidos não podiam esconder indefinidamente as insatisfações causadas por seus programas ministeriais por meio de eleições fraudulentas. Conservadores e Liberais sabiam que, em algum momento, seriam despejados do poder, derrotados nas eleições e tomariam assento como oposição. Ficou resolvido por quase cinquenta anos um assunto ainda mal superado pela política brasileira: ao final do segundo mandato do presidente Lula uma emenda constitucional prevendo a possibilidade do terceira mandato teve tramitação na Câmara dos Deputados.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Uma sessão da Câmara dos Deputados em 1838 (fim)

Entra em discussão o artigo 6 da Lei de Interpretação, que trata da forma do decreto de demissão ou suspensão do magistrado pela Assembléia Provincial. Jerônimo Coelho nota que o conteúdo do artigo não é bem uma interpretação, mas acrescenta material ao texto do Ato Adicional. Paulino nem se ocupa em responder à objeção, preferindo explicar seus objetivos. Dá-se por discutida e é aprovada.

Em seguida vários artigos aditivos sobre temas menores. Nesse ponto, um fato curioso sobre o procedimento legislativo da época. O deputado Nunes Machado apresenta uma emenda de cujo conteúdo discorda apenas para forçar a discussão de um tema: a ineligibilidade, para a Assembléia Provincial, dos cargos executivos da Província (presidente, secretários, comandante de armas). Curiosamente, o procedimento é imediatamente condenado pelo deputado Venâncio Rezende. Outra curiosidade parlamentar. O deputado Herculano Penna, de Minas Gerais, pede a impressão dos aditivos e requer o adiamento da discussão. Rezende novamente contesta, afirmando que o conteúdo dos artigos é simples. Julgada a matéria, o adiamento é rejeitado.

Nesse ponto, o debate novamente se complica. O deputado Jerônimo Coelho apresenta uma emenda determinando que o orçamento geral pague os salários dos funcionários provinciais quando estes forem estabelecidos por leis gerais que tratem de assuntos sobre os quais as províncias não podem legislar. O deputado pela Bahia, Bandeira de Mello, apóia; Venâncio Rezende se pronuncia contra. Mais uma vez, Honório Hermeto intervém: se a lei provincial puder criar empregos, mesmo para executar leis gerais, cujos salários serão pagos pelo orçamento geral, terão enorme incentivo para aumentá-los. Aproveita também para condenar o artigo sobre inelegibilidades: só podem ser eleitos para as assembléias provinciais os que eram para os conselhos gerais. Por fim, volta a outro ponto importante: o presidente de Província sempre tem direito de negar sanção à lei provincial que considerar ofensiva à Constituição do Império.

Bandeira de Mello repudia a censura de Honório Hermeto. O artigo encaminhado por Jerônimo Coelho quer evitar outro perigo: a possibilidade de que as províncias não criem empregos exigidos pela legislação federal porque não teriam como pagá-los. A criação desses empregos, contudo, continuaria dependendo do assentimento da Assembléia Geral.

Paulino surge no debate, mas não para responder a Bandeira de Mello, mas para reforçar a defesa das inelegibilidades feita por Honório Hermeto. Nunes Machado, contudo, lembra que não está interessado no conteúdo da emenda, mas na discussão da matéria. Vota, ademais, contra a emenda requerendo informações da Assembléia Provincial: a Assembléia Geral é que deve informar a razão da derrubada de uma decisão provincial. Paulino sustenta seu texto. Uma nova emenda é apresentada, determinando que a revogação de decisões das assembleías provinciais seja feita por meio de resolução. A discussão, contudo, é adiada.

Nesse ponto, o presidente da Casa se pronuncia sobre a próxima ordem do dia, que incluiria a matéria em debate e mais uma série de resoluções de 1838 e 1837. Na segunda parte da ordem do dia, os artigos aditivos apresentados e uma proposta que restabelecia o foro privilegiado para as causas da Fazenda Nacional.

A sessão é levantada depois das duas e meia da tarde. Mais de quatro horas de debates, portanto.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Uma sessão da Câmara dos Deputados em 1838


A sessão de 6 de setembro de 1838 começou às dez horas da manhã, sob a presidência do deputado Araújo Viana. Verificava-se a existência de número legal, abria-se a sessão, a ata da sessão anterior era lida e aprovada. Os Anais então relacionam os deputados que faltaram com causa e sem causa.

O expediente começou com a leitura de ofícios ministeriais: naquele dia eles tratavam da concessão de pensões militares, da fixação de ordenados para funcionários públicos, um deles comunicava a revisão das quantias pedidas pelo antigo comissário geral do Exército, outro da concessão de benefícios fiscais a uma tecelagem em Goiás, da curiosa fixação de uma pensão por extinção de um cargo público e algumas resoluções administrativas do Regente.

Em seguida são lidos projetos de lei tratando do pagamento, pela Fazenda Pública, de indenizações determinadas pelo Poder Judiciário e da equiparação dos salários dos escrivães da Marinha. Há também requerimentos em votação. O deputado Carneiro Leão quer informações sobre uma cudelaria em Minas Gerais de propriedade de D. Pedro I. O deputado Ferreira Penna pede que a comissão de assembléias provinciais defina as condições de elegibilidade do deputado provincial. Vota-se também um aumento para os professores de bellas artes e um projeto de Aureliano de Souza Coutinho sobre o aterramento dos pântanos entre a Cidade Nova e o Rocio é registrado para tramitação.

Os deputados liberais fazem, então, uma declaração de voto contrário à lei do Orçamento de 1839, então na terceira discussão. Em seguida, uma peça impressionante. Um parecer assinado por José Clemente Pereira invalidando a eleição em várias cidades de Sergipe por contra de fraudes evidentes. Carneiro Leão, em voto separado, discorda e pede a anulação das eleições em toda a Província.

Mais um projeto é julgado objeto de consideração, autorizando a mesa da Santa Casa da Misericórdia a celebrar contratos de soldadas de órfãos, expostos e expostas, sem intervenção obrigatória do juiz de órfãos. A legislação pertinente era um Alvará Real de 1775.

Começa então a segunda parte da Ordem do Dia, com a discussão do artigo 4 do projeto de Lei de Interpretação, justamente a emenda assinada por Carneiro Leão e Paulino definindo o sentido do termo “magistrado” no Ato Adicional, artigo 7. A emenda é aprovada, prejudicando os textos alternativos e passa-se à votação do artigo 5, que trata do processo dos magistrados pelas assembléias legislativas provinciais.

Apresenta-se primeiro ao debate o deputado João José Moura Magalhães (1790-1850), eleito pela Bahia, para expressar dúvidas sobre a capacidade da Assembléia Geral reformar decisões das assembléias provinciais em processos contra magistrados. Se estas funcionam como tribunal de justiça, como Poder Judiciário, suas decisões não poderiam ser invadidas pelo Legislativo.

É respondido pelo deputado por São Paulo, Antônio Carlos de Andrada Machado e Silva (1773-1845), irmão de José Bonifácio: mesmo assumindo as funções judiciais, a assembléia continua sendo um órgão legislativo e suas decisões podem ser revistas pela Assembléia Geral. Pede, entretanto, que a emenda de Paulino e Hermeto seja dividida em duas partes – quer votar contra a segunda. É acompanhado no pedido pelo deputado Venâncio Henriques de Rezende (1784-1866) , um religioso eleito por Pernambuco e que já tinha sido presidente da Câmara dos Deputados em 1834. Nesse ponto, Paulino intervém para defender o artigo, mas os Anais não registram suas palavras.

O deputado Jerônimo Coelho (1806-1860), que além de deputado geral era também deputado na assembléia provincial de Santa Catarina, não se deixa convencer e vai enumerando os problemas judiciais criados pela transformação da assembléia em tribunal: identidade de quem faz a pronúncia e quem julga; diferença de veredito com respeito à justiça criminal; falta de definição constitucional da ação do procurador nesses casos. Recomenda, portanto, que a Assembléia seja considerada apenas um tribunal administrativo.

Paulino responde de forma política: os defeitos mencionados não são da Lei de Interpretação, mas do próprio Ato Adicional. É ele que determina a revisão, pela Assembléia Geral, de todo e qualquer ato ou lei provincial; é ele que fez das assembléias responsáveis por processos contra magistrados. Por isso, aliás, a diferença de vereditos com respeito à justiça criminal não é um problema: cada poder aplicará as penas facultadas pela lei.

Moura Magalhães volta à carga. Aceita a opinião de Paulino, mas pergunta o que aconteceria se o veredito provincial é derrubado pela Assembleía Geral. Continuaria respondendo o processo criminal? Outro problema: a Assembléia Provincial pode apurar a responsabilidade de um juiz que é também membro da Assembléia Geral?

Nesse momento, é visível que o debate pode enveredar pela série infinita de paradoxos criados pelo julgamento de crimes de responsabilidade pelo Poder Legislativo. (Recentemente, o ex-presidente Collor foi punido pelo Congresso com o impeachment, mas foi absolvido pelo STF das acusações de corrupção que basearam a denúncia perante o Senado).

Então intervém Carneiro Leão para dizer que se o projeto de lei tiver de responder a todas essas dúvidas sua discussão consumirá anos. As assembléias não podem julgar como corpos políticos porque, nesse caso, sem as garantias do devido processo. Se julgam, é como tribunais, de acordo com a lei. Também não há problema no fato de assumirem a pronúncia e o julgamento: tal ocorre em todas as instâncias superiores dos poderes e também nos Estados Unidos da América. Jerônimo Coelho não se dá por convencido, mas o artigo vai a votação. É aprovado, mas os Anais não registram a contagem de votos, nem o procedimento.


(segue)


(Imagem: sala de sessões do prédio da Cadeia Velha, onde funcionava a Câmara dos Deputados).

“Este desânimo e ceticismo o receio em muito"

Por fim, Paulino volta a comentar a situação de seu programa de obras: a pavimentação da Estrada Velha de Parati; da Estrada da Serra de Mangaratiba, da serra de Itaguaí, a Estrada de Angra dos Reis, do Comércio, da Estrela, da Polícia, de Cantagalo, do morro da Viração, de Maricá, os quatro ramais da estrada da ponte do Itajuru, a grande ponte da Villa de Paraíba, com pilares de cantaria, o Canal do Nogueira, a muralha do Paraíba em Campos, o encanamento do Rio São Lourenço em Niterói, a escavação dos baixios da Lagoa de Araruama, a continuação da estrada do Tipotá e um canal de comunicação entre os rios Casseribu e Macacu. Era pouco, reconhece Paulino. Seu orçamento consumia entre 150 a 180 contos de réis e não havia condições, por exemplo de mudar o traçado das estradas. Limitados aos reparos, o investimento não rendia:

“Este desânimo e ceticismo o receio em muito, porque as empresas da Administração carecem mais que tudo de encontrar nos seus próprios agentes e na população confiança acerca de seus resultados” (pág 48).

Paulino, contudo, não considera prudente estabelecer uma lista de prioridades e gastar os recursos apenas nessas obras. Para começar, a escolha seria prejudicada pelo fato de que os municípios não têm representação equilibrada na Assembléia. Vastas regiões da Província ficariam sem a presença da ação do governo.

Nesse ponto, sugere um empréstimo, adequado, em volume, a um governo provincial e dedicado a um fundo específico, para evitar desvios para outras finalidades (pág 51). O empréstimo daria volume às atividades de construção e com isso seriam atraídos capitais privados. Paulino concorda que não é boa política falar em empréstimo quando a receita caiu e a Província tem despesas a pagar de 85 contos de réis, mas lembra da importância de manter o programa de obras. Chega mesmo a sugerir o uso de colonos, tal como acontecia nas obras da Ponte do Paraíba, onde tinham bem mais rendimento que os escravos. Recomenda que, quando a Província receber os terrenos públicos, por ocasião da divisão do patrimônio territorial com o governo geral, uma parte deles seja distribuída como pagamento aos colonos. Dando um exemplo do potencial dessas medidas, anuncia a construção de uma ponte volante sobre o rio Paraíba em Campos, construída por uma Companhia por ações (pág 68).

Uma vez mais, o centralizador Paulino José termina sugerindo um curso de ação independente para a Província, por meio da contratação de um empréstimo, que seria utilizado por um mecanismo que bem lembra os fundos vinculados do passado recente do Brasil. Recomenda até mesmo o uso de mão de obra livre nas obras públicas, que poderiam ser pagas com terras distribuídas pelo governo provincial.

Ao fim do discurso, define quais devem ser as prioridades de maior rendimento de sua administração aos deputados provinciais: instrução pública e obras de comunicação.

(Nota bibliográfica: os relatórios e discursos do Presidente da Província estão disponíveis no site: http://www.crl.edu/content/provopen.htm)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Paulino, descentralizador

O trecho notável do pronunciamento do Presidente da Província do Rio de Janeiro diante da Assembléia, em março de 1838, transcrito na nota anterior, mostra o centralizador Paulino José Soares de Souza enumerando várias razões para que a administração tributária provincial seja radicalmente separada da Mesa do Consulado da Corte e dos funcionários do fisco geral. Ele registra, em detalhes, como um federalismo dual é a correta interpretação administrativa do Ato Adicional. As províncias não podem depender do governo geral para arrecadar seus impostos e o centralizador Paulino de Souza sugere mesmo a criação de uma Recebedoria própria. Na verdade, as províncias não podem sequer esperar que o governo central cumpra seus compromissos em matéria de transferência de recursos devidos e reconhecidos.

O centralizador Paulino não defende, portanto, qualquer tipo de racionalização da administração tributária em favor do governo geral, também não pode acreditar que a gestão das províncias deva confiar na transferência de recursos do governo geral e sabe as consequências da falta de controle sobre a arrecadação: a suspensão de várias obras importantes, que passaram a depender de doações e financiamentos privados. Como lembra Paulino, a falta de uma prestação constante de serviços e o não pagamento de suas despesas são as principais causas de descrédito dos governos.

As dúvidas levantadas pelo pronunciamento do Presidente da Província sobre o funcionamento da gestão tributária sob as regras do Ato Adicional mostram como é difícil expor esse debate em torno do eixo centralização-descentralização, ao menos no sentido histórico que este assumiu. Paulino não tem qualquer dúvida sobre a legitimidade e conveniência de sua função como Presidente provincial, sobre a importância da Assembléia Provincial e sobre a necessidade de dotar o governo local dos melhores instrumentos para conduzir as ações que lhes são próprias. Repete em várias ocasiões que o governo geral não tem tempo, recursos ou condíções políticas de cuidar dos assuntos de interesse direto da Província.

domingo, 12 de julho de 2009

"a renda da Província tem decrescido consideravalmente"

O discurso de março de 1838 chega, enfim, às más notícias. A arrecadação provincial sofrera quedas consideráveis desde maio do ano anterior e as perdas não foram compensadas por transferências devidas e reconhecidas do governo geral nos anos de 1835 e 1836. Sem saber exatamente o que causara a redução das receitas, Paulino informa que procedeu a uma rápida revisão dos gastos com o programa de obras viárias que anunciara nos relatórios de 1836 e 1837. Quanto aos problemas, descarta desvios provocados pelas guias de exportação emitidas pelos estados de São Paulo e Minas Gerais. Havia desmandos, mas os valores fixados nas guias sofreram queda rápida com a instalação da fiscalização provincial. Paulino nota, além disso, que o problema existia apenas para o caso de São Paulo: em Minas Gerais não compensava, para os produtores de café, buscar guias na capital provincial.

A diferença entre arrobas produzidas e as efetivamente taxadas, superior a 752 mil arrobas, não poderia ser explicada pela produção de São Paulo, que mal ultrapassava um terço desse valor. Foi essa diferença e a suspensão da quota do açúcar que explicam as perdas na arrecadação provincial.

Nesse ponto, o relato de Paulino fica ainda mais interessante. Sem ter informações sobre a arrecadação, terceirizada e conduzida pela Mesa do Consulado da Corte, responsável pela coleta dos tributos gerais, lembra a Assembléia da vantagem de ter um órgão próprio de arrecadação: poderia ter maior controle sobre o desempenho dos fiscais e melhor comunicação com os registros responsáveis pela fiscalização da entrada de mercadorias na província. Uma comunicação do responsável pela Mesa do Consulado da Corte sugere, inclusive, que o café vindo de São Paulo tinha prioridade no processamento fiscal. Paulino decidiu então criar uma Mesa Provincial no Consulado, a cargo de João José Dias de Camargo. Até aquele momento, contudo, a Mesa ainda não funcionava.

Assim como, aliás, a Contadoria da Província estava longe de consolidar a situação das coletorias, em operação desde 1832. A Tesouraria não tinha condições humanas e manteriais de cuidar dos trabalhos correntes e comprir as funções de contabilidade pública. Por isso, Paulino sugere a criação de uma Recebedoria Provincial, que ficaria a cargo das operações de administração tributária, com a remuneração adequada para atrair funcionários qualificados e idôneos. Nesse ponto (pág 41) emerge um comentário preciso sobre as implicações reais, não teóricas, do federalismo do Ato Adicional nas condições brasileiras:



Paulino conclui seu pronunciamento sobre contas públicas lembrando apenas que não havia necessidade de apresentar novamente o orçamento para o período 1838-1839 e não seria conveniente expor aquele referente aos anos 1839-1840. Era tarefa para a abertura da sessão legislativa de março de 1839.

sábado, 11 de julho de 2009

Uma estranha descentralização


Paulo Mercadante, em seu clássico de 1965, A Consciência Conservadora no Brasil, também dedica um capítulo ao Ato Adicional e sua posterior revisão pelos Conservadores. Vê no conceito de interpretação uma intenção moderada. Em lugar de um programa contra-revolucionário, Vasconcelos e seus aliados teriam produzido uma primeira versão da conciliação, marca da política nacional. Ele mesmo reconhece, contudo, que tal leitura não é original, tendo sido antecipada pelo conceito contemporâneo de transação.

De todo modo, segue difícil conciliar os termos tão familiares - centralização e seu oposto - com uma análise literal do Ato Adicional. O estudo do federalismo não revela nenhum caso em que funcionários responsáveis por política gerias, são pagos com recursos federais e regulados com legislação local. Tampouco o conceito de descentralização prescinde de forças judiciais, policiais ou de segurança de natureza federal. Quando assim ocorreu, o erro foi logo perseguido como tal e corrigido.

A descrição da política imperial entre 1837 e 1840 como um debate entre centralização vs descentralização parece tanto mais imprecisa quando não se registra oposição política por parte dos responsáveis pela 'descentralização' anterior. Ao contrário, os liberais apoiaram a Maioridade e em seguida produziram a mais célebre fraude eleitoral do Brasil, a "eleição do cacete". As revoltas liberais chegam às ruas apenas depois que o esforço para conquistar o poder central fracassa.

A visão de Ilmar Rohloff de Mattos segue, nesse sentido, soberana: trata-se de um profundo conflito político e ideológico e não de uma querela sobre formatos administrativos. Os liberais não conseguiram dar uma forma consistente ao federalismo de 1831; os conservadores souberam erguer o Leviatã.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Instrução Pública em 1838

No dia 3 de março de 1838, poucos meses depois da apresentação do relatório do Presidente da Província, Paulino José Soares de Souza voltou a dirigir-se à Assembléia Provincial para prestar contas de sua administração. Como era a praxe, começa pela Instrução Pública, anunciando os números da educação fundamental. Havia 21 escolas públicas em funcionamento, contando com aproximadamente 700 alunos, e ao menos 48 escolas particulares, atendendo outros 600 alunos. A soma ainda uma pequena minoria para uma população estimada em 400 mil pessoas.

De resto, seu discurso era um rosário de problemas, a começar dos escassos instrumentos de controle sobre a qualidade do ensino privado oferecidos pela Lei Provincial de 2 de janeiro de 1837. O principal problema da instrução era a própria escola, geralmente funcionando em prédio alugado, adaptado para o uso. Paulino informa a Assembléia que estuda um plano para padronizar plantas de prédios escolares e iniciar um programa de construção. Também recomendava a concessão de mais "pensões" aos candidatos a vagas na Escola Normal como uma forma de aumentar o interesse na profissão de docente. Diante dos problemas de financiamento das escolas no meio rural chega mesmo a sugerir a autorização para que professores seja pagos por seus alunos, aqueles com mais condições. Por várias vezes menciona a preocupação com a existência de "charlatães" que se apresentam no interior como professores habilitados.

É notável registrar seu interesse na publicação de livros didáticos e informa (pág 6) que vários deles estão já impressos e prontos para a distribuição: manuais do ensino básico francês, traduzidos para uso no Brasil. Quanto à organização do ensino "secundário", recomenda gradualismo no investimento público. Sugere que a Assembléia destine recursos para a manutenção da principal instituição existente: o Seminário de Jacuecanga.

Se estende com detalhes sobre a implantação do método de ensino advogado por Joseph Lancaster (1778-1838), baseado na disciplina em sala de aula (inclusive com castigos), na memorização e no uso de monitores, o chamado "ensino mútuo", em que os alunos mais adiantados ensinam os outros. Paulino recomenda apenas que sejam evitadas as práticas punitivas do método. Há uma tese recente da professora Fátima Maria Neves tratando do assunto: O Método Lancasteriano e o projeto de formação disciplinar do povo (São Paulo, 1808-1889). 2003, Tese (Doutorado em História) – UNESP, Assis, 2003.

(http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_metodo_lancaster.htm#_ftn1)

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Uma teoria política do Império


A análise da política imperial em termos contemporâneos bem pode ter seu início com as obras de José Murilo de Carvalho. A constituição sociológica das elites políticas do Brasil Império e os capítulo mais importantes de sua história são examinados em dois livros - A Construção da Ordem (1980) e Teatro das Sombras (1988), desdobramentos de sua tese de doutoramento, apresentada em Stanford, em 1975. De tão significativas, essas obras de José Murilo de Carvalho ganharam visibilidade para além dos círculos acadêmicos e muitos (inclusive o autor desse blog) tiveram sua atenção despertada para o fato de que o comparecimento verificado na eleição de 1872 foi superado apenas nas eleições republicanas de 1945. Um estranho fato destacado pelo Teatro das Sombras.

Na última eleição direta sob o Império, votaram 1.097.698 cidadãos, quase 11% da população, incluindo os trabalhadores escravos; em 1945, foram 6.200.805 eleitores ou 13,4% da população. Na eleição crucial de 1930, apenas 5,6% da população votou. (O Teatro das Sombras, pág 141).

Tão notáveis foram os frutos desse empreendimento intelectual que permitiram a seu autor lançar, ao menos, no capítulo 5 de O Teatro das Sombras, os elementos de uma teoria original sobre a relação entre partidos políticos, Poder Legislativo e o Poder Moderador, uma teoria com lições instrutivas para a análise de regimes políticos. Citando:

"Sem dúvida, inversões políticas sem que interviesse questão parlamentar não era prática que servisse ao fortalecimento dos partidos. Mas o que os críticos não percebiam é que, nas condições brasileiras da época, pelo modo como se faziam as eleições, e elas eram feitas sob a direção dos partidos políticos, note-se, o Poder Moderador alternando as situações políticas era o que garantia não só a competição partidária, mas a própria sobrevivência dos partidos nacionais e seu enraizamento na população, além de difundir os valor das regras da competição democrática (...) Desaparecido o Poder Moderador, desaparecido o fator de arbitragem entre as várias facções políticas, desaparecido o garantidor da alternância dos partidos no poder, o resultado foi simplesmente o fim dos partidos políticos nacionais e a implantação de partidos únicos nos estados." (pág 158).

Se olhamos o Poder Moderador em sua real função política após 1840, se olhamos sem preconceito e sem a fixação em convenções, notaremos que, no sistema político imperial, há um eleitor efetivo, responsável pela mudança de homens e políticas: o Imperador.

Em termos analíticos, o regime funcionava como um sistema político extramente censitário: votava apenas um cidadão. Qualificado justamente porque não era beneficiário de qualquer gabinete, não tinha interesse pessoal em qualquer política e exercia tal poder de acordo com condições aceitáveis por todos os envolvidos: haveria sucessão no poder e haveria liberdade de expressão. Pedro II jamais permitiu que uma facção ou partido se perpetuasse no poder, criando com suas atribuições constitucionais justamente os efeitos práticos da competição política: oposição organizada, respeito pelas instituições parlamentares, identidades partidárias.

Com o uso dessa perspectiva conceitual, torna-se muito mais fácil entender a diferença, em termos de estabilidade política, entre o período imperial e o republicano. O primeiro possuía um mecanismo endógeno e consensual de sucessão no poder; o segundo, não. Vivia de revoluções, golpes e mudanças constitucionais. E nem adianta sugerir que o Brasil do século XIX era uma sociedade menos complexa. Nossos vizinhos também eram e conheceram décadas de caos e turbulências. Os Estados Unidos, nação democrática, rasgou-se ao meio em uma guerra civil que consumiu centenas de milhares de mortos. A França viveu décadas sob governo napoleônico.

Curiosamente, o único regime a que o brasileiro se pode comparar era o britânico, que, ao longo do mesmo século XIX, conduzia reformas eleitorais com o objetivo de garantir substância democrática ao seu parlamentarismo. A Reforma Eleitoral de 1867, por exemplo, fez o eleitorado saltar de cerca de um a cinco milhões de homens adultos. Na eleição de 1868, os liberais tiveram cerca de 1 milhão 430 mil votos (62%); os conservadores, pouco mais de 900 mil (38%). Como vimos, na eleição de 1872, no Brasil, houve mais de 1 milhão de eleitores.

Esse modelo sugere também duas razões decisivas para a queda da Monarquia.

Caiu porque a reforma eleitoral de 1881 simplesmente cortou os laços do sistema partidário com a base do eleitorado. Subitamente, o povo não mais votava, nem que fosse para vender o seu sufrágio ao potentado local.

Caiu porque o Monarca teria abandonado uma das bases de sua atuação política: a imparcialidade substantiva. O discreto apoio ao fim do trabalho escravo retirou da família imperial a condição de árbitro dos partidos. O apoio do eleitorado urbano ao posicionamento do Imperador só agravou essa realidade. A biografia de Pedro II ganha duplamente. Sua habilidade produziu 49 anos de estabilidade constitucional, período ainda não alcançado por qualquer texto republicano. O sacrifício deliberado de sua posição institucional ajudou a libertar os escravos.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Página brilhante


Talvez a melhor descrição conceitual da política imperial, expressa no conflito entre liberais e conservadores, esteja contida em uma página brilhante de O Tempo Saquarema - A Formação do Estado Imperial, de Ilmar Rohloff de Mattos. Basta esse momento de clareza intelectual para que todo o marxismo universitário dos primeiros capítulos seja perdoado. Ou seja, esquecido.

Ilmar argumenta que o pensamento liberal jamais conseguiu escapar de uma contradição fundamental: como ofertar liberdade a uma sociedade sempre à beira do mandonismo, do poder local ou, para usar um termo contemporâneo, da apropriação privada do poder.

O chefe liberal que defendia as liberdades civis na Câmara era o mesmo que lutava para manter os portões de sua fazenda fora do alcance do braço da lei. Nos termos da política da Constituição de 1988, o mesmo deputado que defendia a redemocratização e a liberdade de imprensa patrocinava trens de alegria e o acúmulo de aposentadorias.

Em comparação, os conservadores não padeciam de tais inconsistências. Consolidar o poder do Estado era uma resposta completa ao problema da ordem legal interna, um projeto de ação tática, uma operação de geopolítica e, como será visto mais tarde, um instrumento de política externa. Desnecessário ressaltar que a questão do trabalho escravo, considerado intrinsecamente, é apenas um aspecto transitório nesse cenário. Os liberais brasileiros jamais conseguiram firmar reputação como defensores do império da lei. Essa fraqueza é tão fatal hoje como nos tempos do Ato Adicional.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

30 de agosto de 1838 (fim)


Não há como falar em uniformização da legislação porque os remédios constitucionais, providos pelo Ato Adicional, não funcionam. A negação da sanção pelo presidente da Província, cuja liderança é geralmente dependente da Assembléia Provincial, não funcionava. A revisão pela Assembléia Geral tampouco. Em um conjunto de mais de 900 leis, apenas 4 tinham sido derrubadas pela Câmara para, logo em seguida, serem adotadas, sob outra forma, pelas mesmas assembléias.

Uma situação, por sinal, corrigida com grande esforço mesmo hoje, quando o Supremo Tribunal Federal enfrenta uma pesada pauta de questionamentos da constitucionalidade da legislação estadual. Quase sempre - assim como em 1838 - sobre o funcionalismo público, inelegibilidades e nepotismo.

Paulino chega a considerar a hipótese de um Poder Judiciário exercendo o controle de constitucionalidade, mas não avança por esse caminho, preferindo usar Blackstone para a interpretação do Ato Adicional na direção de um federalismo dual. Por sinal, um exercício de sofisticação intelectual que não passaria despercebido de seus pares.

30 de agosto de 1838 (segue)


O discurso prossegue anotando as consequências mais nefastas da descentralização promovida pelo Ato Adicional: a completa perda de uniformidade na provisão da justiça. Cada uma das 18 províncias se sentiu livre para legislar sobre direito penal e direito processual e sobre a organização do poder judiciário inviabilizando a provisão da igualdade de direitos aos cidadãos brasileiros. Sem qualquer esperança, por sinal, de análise pela Assembléia Geral. Como membro da comissão de assembléias provinciais da Câmara, Paulino afirma ter analisado nada menos que 900 leis diferentes.

O problema não era a existência de legislações provinciais concorrentes ou suplementares a uma legislação nacional, que definisse o conjunto mínimo de direitos civis e políticos. O problema era a impossibilidade técnica de produzir tal legislação nacional e impor seu conteúdo às Assembléias.

domingo, 5 de julho de 2009

Uma adição e sua interpretação

O Ato Adicional recebe sua designação oficial como a Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834, cuja íntegra, por sinal, não é oferecida pelo site do Palácio do Planalto. Não é um texto longo, para uma revisão constitucional.

Seu artigo primeiro trata da instalação das assembléias legislativas provinciais, possuidoras das mesmas prerrogativas regimentais da Assembéia Geral, mas cujas sessões teriam a duração de dois anos (artigo 4) e funcionariam por apenas dois meses por cada ano (artigo 7). Os problemas começam com o federalismo confuso proposto por seu artigo 10. Curiosamente, o texto começa na linha correta. O parágrafo 2, por exemplo, estabelece que as Assembléias Provinciais podem legislar sobre ensino, mas não sobre os cursos de Medicina, Direito e outras Academias existentes, ou seja, sobre ensino superior.

Logo em seguida o parágrafo 4 altera esse cenário, permitindo a legislação sobre polícia e economia municipal e abrindo caminho para todo tipo de má interpretação interessada. Nesse sentido, de pouco valeu a definição do parágrafo 7, que afirma serem os empregos municipais e provinciais todos os que existirem nos municípios e províncias com exceção daqueles necessários para a administração da Fazenda Nacional; a administração da Guerra e Marinha; dos Correios gerais; e os cargos de Presidente de Província, Bispo, Comandante Superior da Guarda Nacional, membros das Relações e Tribunais superiores e empregados do Ensino Superior.

O Ato Adicional apresenta mesmo um modelo mínimo para a resolução de conflitos constitucionais. O Presidente da Província poderia negar sanção a uma lei e a Assembléia precisava, então, aprovar novamente a matéria com quorum de dois terços. Nesse caso, a lei subiria ao Governo e à Assembléia Geral, que decidiria sobre a matéria. Se não estivesse reunida, o Governo poderia mantê-la em vigor interinamente. De fato, o artigo 20 determina o envio regular da legislação provincial para exame de constitucionalidade pelo Poder Legislativo Geral.

Outro aspecto notável do Ato Adicional está nas disposições sobre a eleição do Regente. O artigo 27 determina que cada eleitor daria dois votos ao Regente, um deles necessariamente em um não nativo em sua Província. Para garantir a livre operação do gabinete, o artigo 32 determina a supressão do Conselho de Estado.

A lei, contudo, foi editada com plena consciência de seu caráter experimental. Tal como a Constituição de 1988, que previa uma revisão constitucional em 1993, o Ato Adicional incluía o artigo 25, permitindo sua “interpretação” por uma lei ordinária em caso de dúvida sobre a inteligência de seus artigos.

A Lei de Interpretação do Ato Adicional (Lei n. 105, de 12 de maio de 1840), portanto, não tem muito trabalho a fazer: seu conteúdo é composto por oito breves artigos:

1) Especifica que o artigo 10, Parágrafo 4, falava em “polícia e economia municipal”, com exclusão da Polícia Judicial. Foi com base nesse artigo que as autoridades provinciais se apoderaram de todo o poder de polícia no Império, retirando do governo geral qualquer ingerência no controle da lei e da ordem;

2) Determina que a expressão empregos municipais e provinciais (artigo 10, parágrafo 7 do Ato Adicional) não se refere a empregos regulados por leis gerais;

3) Reforça a proibição de editar legislação provincial sobre funções de competência do Poder Legislativo Geral;

4) Especifica que o termo 'Magistrado' do Artigo 11, parágrafo 7, não se aplica aos juízes dos tribunais de relação ou superiores (pode-se imaginar hoje as consequências políticas da nomeação, por Assembléias Legislativas, dos Desembargadores Federais...);

5 e 6) Fixa as regras para a suspensão de magistrados pelas Assembléias Provinciais;

7) Especifica que a recusa à sanção pelo Presidente de Província, no artigo 16 do Ato Adiconal, é implicitamente por vício de inconstitucionalidade;

8) Establece as regras para a revogação das Leis Provinciais opostas à Lei de Interpretação. A legislação em vigor só seria revogada por decisão expressa da Assembléria Geral.

Como se pode notar, a Lei de Interpretação não representa nenhuma operação bismarckeana de centralização política autoritária. Seus alvos específicos são perfeitamente compreensíveis à luz, inclusive, da experiência federal da Constituição de 1988. No Brasil, a autonomia provincial ou estadual significa, na prática, a absorção de recursos administrativos federais para sua posterior distribuição política, de acordo com lógicas locais.

Imagine-se, hoje, as consequências da ausência de uma Polícia Federal, ou da edição sobre legislação estadual sobre empregos federais nos estados, ou a nomeação, pelos estados, dos juízes federais que decidem em grau de recurso. Imagine-se que o Presidente de Província seja indicado pelo governo geral sem poder real de veto sobre a legislação provincial. Pois os desmandos posteriores a 1834 são bastante similares à confusão legislativa pós-1988, confusão que tanto custou aos cofres públicos.

Por isso a legislação de 1840 não foi barrada na Câmara, por isso não foi objeto de resistência nas Províncias: ela restabelecia o espírito da autonomia possível dentro da Constituição de 1824. Ninguém razoável - hoje ou em 1834 - pode aceitar que um Juiz Federal, em um Tribunal de Recursos, possa ser nomeado ou demitido por uma autoridade provincial eleita por dois anos, para trabalhar por quatro meses de sessões.

Classificar a obra política da Lei de Interpretação como uma "centralização autoritária" embute, em larga medida, apenas a resistência nacional à mera idéia de razoabilidade. Nem sempre se vê claramente o que significa federalismo, como o via, o jornalista Antônio Sales no Ceará do início do século XX:

"Nesta República monstruosa, onde não há justiça, nem instrução, nem eleição, nem responsabilidades, a bandeira da federação é a bandeira negra do corso cobrindo todas as depredações da pirataria política".

(Os textos podem ser lidos em: http://www.brasilimperial.org.br/const1824.htm)

quarta-feira, 1 de julho de 2009

"Meu pai era doutor em Medicina"

A família de Paulino praticamente se desfaz na segunda metade da década de 1830. Sua irmã, Clotilde, falece em 1835, um ano depois de casada. Sua mãe, Antoinette, desconsolada, retorna à França. Em junho de 1838, retornando de uma visita a um paciente, seu pai sofre uma queda de cavalo em uma praça de São Luís. Não se recuperou, morrendo de uma infecção interna em 22 de setembro de 1838. Paulino tinha então 31 anos de idade.

Quando um diplomata pediu suas armas, para colocação no Palácio Real de Fredericksburg, em Copenhagen, ele escreveu: "Quanto ao pedido de minhas armas devo dizer a V.S. que não as tenho e que nunca procurei tê-las. Sou de família decente, mas não sou nobre. Meu pai era doutor em Medicina. Não tendo armas por nascimento, nunca me passou pela cabeça adquiri-las pelos modos pelos quais muita gente tanto ou talvez menos nobre do que eu as tem". A última vontade de seu pai, cumprida fielmente, pedia que Paulino, como bom Filho e Irmão terminasse de criar e educar sua irmã, Valentina. (Vida, págs 57-58).