domingo, 5 de julho de 2009

Uma adição e sua interpretação

O Ato Adicional recebe sua designação oficial como a Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834, cuja íntegra, por sinal, não é oferecida pelo site do Palácio do Planalto. Não é um texto longo, para uma revisão constitucional.

Seu artigo primeiro trata da instalação das assembléias legislativas provinciais, possuidoras das mesmas prerrogativas regimentais da Assembéia Geral, mas cujas sessões teriam a duração de dois anos (artigo 4) e funcionariam por apenas dois meses por cada ano (artigo 7). Os problemas começam com o federalismo confuso proposto por seu artigo 10. Curiosamente, o texto começa na linha correta. O parágrafo 2, por exemplo, estabelece que as Assembléias Provinciais podem legislar sobre ensino, mas não sobre os cursos de Medicina, Direito e outras Academias existentes, ou seja, sobre ensino superior.

Logo em seguida o parágrafo 4 altera esse cenário, permitindo a legislação sobre polícia e economia municipal e abrindo caminho para todo tipo de má interpretação interessada. Nesse sentido, de pouco valeu a definição do parágrafo 7, que afirma serem os empregos municipais e provinciais todos os que existirem nos municípios e províncias com exceção daqueles necessários para a administração da Fazenda Nacional; a administração da Guerra e Marinha; dos Correios gerais; e os cargos de Presidente de Província, Bispo, Comandante Superior da Guarda Nacional, membros das Relações e Tribunais superiores e empregados do Ensino Superior.

O Ato Adicional apresenta mesmo um modelo mínimo para a resolução de conflitos constitucionais. O Presidente da Província poderia negar sanção a uma lei e a Assembléia precisava, então, aprovar novamente a matéria com quorum de dois terços. Nesse caso, a lei subiria ao Governo e à Assembléia Geral, que decidiria sobre a matéria. Se não estivesse reunida, o Governo poderia mantê-la em vigor interinamente. De fato, o artigo 20 determina o envio regular da legislação provincial para exame de constitucionalidade pelo Poder Legislativo Geral.

Outro aspecto notável do Ato Adicional está nas disposições sobre a eleição do Regente. O artigo 27 determina que cada eleitor daria dois votos ao Regente, um deles necessariamente em um não nativo em sua Província. Para garantir a livre operação do gabinete, o artigo 32 determina a supressão do Conselho de Estado.

A lei, contudo, foi editada com plena consciência de seu caráter experimental. Tal como a Constituição de 1988, que previa uma revisão constitucional em 1993, o Ato Adicional incluía o artigo 25, permitindo sua “interpretação” por uma lei ordinária em caso de dúvida sobre a inteligência de seus artigos.

A Lei de Interpretação do Ato Adicional (Lei n. 105, de 12 de maio de 1840), portanto, não tem muito trabalho a fazer: seu conteúdo é composto por oito breves artigos:

1) Especifica que o artigo 10, Parágrafo 4, falava em “polícia e economia municipal”, com exclusão da Polícia Judicial. Foi com base nesse artigo que as autoridades provinciais se apoderaram de todo o poder de polícia no Império, retirando do governo geral qualquer ingerência no controle da lei e da ordem;

2) Determina que a expressão empregos municipais e provinciais (artigo 10, parágrafo 7 do Ato Adicional) não se refere a empregos regulados por leis gerais;

3) Reforça a proibição de editar legislação provincial sobre funções de competência do Poder Legislativo Geral;

4) Especifica que o termo 'Magistrado' do Artigo 11, parágrafo 7, não se aplica aos juízes dos tribunais de relação ou superiores (pode-se imaginar hoje as consequências políticas da nomeação, por Assembléias Legislativas, dos Desembargadores Federais...);

5 e 6) Fixa as regras para a suspensão de magistrados pelas Assembléias Provinciais;

7) Especifica que a recusa à sanção pelo Presidente de Província, no artigo 16 do Ato Adiconal, é implicitamente por vício de inconstitucionalidade;

8) Establece as regras para a revogação das Leis Provinciais opostas à Lei de Interpretação. A legislação em vigor só seria revogada por decisão expressa da Assembléria Geral.

Como se pode notar, a Lei de Interpretação não representa nenhuma operação bismarckeana de centralização política autoritária. Seus alvos específicos são perfeitamente compreensíveis à luz, inclusive, da experiência federal da Constituição de 1988. No Brasil, a autonomia provincial ou estadual significa, na prática, a absorção de recursos administrativos federais para sua posterior distribuição política, de acordo com lógicas locais.

Imagine-se, hoje, as consequências da ausência de uma Polícia Federal, ou da edição sobre legislação estadual sobre empregos federais nos estados, ou a nomeação, pelos estados, dos juízes federais que decidem em grau de recurso. Imagine-se que o Presidente de Província seja indicado pelo governo geral sem poder real de veto sobre a legislação provincial. Pois os desmandos posteriores a 1834 são bastante similares à confusão legislativa pós-1988, confusão que tanto custou aos cofres públicos.

Por isso a legislação de 1840 não foi barrada na Câmara, por isso não foi objeto de resistência nas Províncias: ela restabelecia o espírito da autonomia possível dentro da Constituição de 1824. Ninguém razoável - hoje ou em 1834 - pode aceitar que um Juiz Federal, em um Tribunal de Recursos, possa ser nomeado ou demitido por uma autoridade provincial eleita por dois anos, para trabalhar por quatro meses de sessões.

Classificar a obra política da Lei de Interpretação como uma "centralização autoritária" embute, em larga medida, apenas a resistência nacional à mera idéia de razoabilidade. Nem sempre se vê claramente o que significa federalismo, como o via, o jornalista Antônio Sales no Ceará do início do século XX:

"Nesta República monstruosa, onde não há justiça, nem instrução, nem eleição, nem responsabilidades, a bandeira da federação é a bandeira negra do corso cobrindo todas as depredações da pirataria política".

(Os textos podem ser lidos em: http://www.brasilimperial.org.br/const1824.htm)

2 comentários:

  1. Finalmente estamos superando na academia esse entendimento ingênuo que centralização significa autoritarismo. A política para as metrópoles do governo militar, por exemplo, era centralizada mas bem mais consistente do que a delegação da questão aos estados feita pela Constituição de 88.

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  2. Caro Anônimo, delegação, no Brasil, quase sempre é o outro nome para a "bandeira de corso"...

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