quinta-feira, 9 de julho de 2009

Uma teoria política do Império


A análise da política imperial em termos contemporâneos bem pode ter seu início com as obras de José Murilo de Carvalho. A constituição sociológica das elites políticas do Brasil Império e os capítulo mais importantes de sua história são examinados em dois livros - A Construção da Ordem (1980) e Teatro das Sombras (1988), desdobramentos de sua tese de doutoramento, apresentada em Stanford, em 1975. De tão significativas, essas obras de José Murilo de Carvalho ganharam visibilidade para além dos círculos acadêmicos e muitos (inclusive o autor desse blog) tiveram sua atenção despertada para o fato de que o comparecimento verificado na eleição de 1872 foi superado apenas nas eleições republicanas de 1945. Um estranho fato destacado pelo Teatro das Sombras.

Na última eleição direta sob o Império, votaram 1.097.698 cidadãos, quase 11% da população, incluindo os trabalhadores escravos; em 1945, foram 6.200.805 eleitores ou 13,4% da população. Na eleição crucial de 1930, apenas 5,6% da população votou. (O Teatro das Sombras, pág 141).

Tão notáveis foram os frutos desse empreendimento intelectual que permitiram a seu autor lançar, ao menos, no capítulo 5 de O Teatro das Sombras, os elementos de uma teoria original sobre a relação entre partidos políticos, Poder Legislativo e o Poder Moderador, uma teoria com lições instrutivas para a análise de regimes políticos. Citando:

"Sem dúvida, inversões políticas sem que interviesse questão parlamentar não era prática que servisse ao fortalecimento dos partidos. Mas o que os críticos não percebiam é que, nas condições brasileiras da época, pelo modo como se faziam as eleições, e elas eram feitas sob a direção dos partidos políticos, note-se, o Poder Moderador alternando as situações políticas era o que garantia não só a competição partidária, mas a própria sobrevivência dos partidos nacionais e seu enraizamento na população, além de difundir os valor das regras da competição democrática (...) Desaparecido o Poder Moderador, desaparecido o fator de arbitragem entre as várias facções políticas, desaparecido o garantidor da alternância dos partidos no poder, o resultado foi simplesmente o fim dos partidos políticos nacionais e a implantação de partidos únicos nos estados." (pág 158).

Se olhamos o Poder Moderador em sua real função política após 1840, se olhamos sem preconceito e sem a fixação em convenções, notaremos que, no sistema político imperial, há um eleitor efetivo, responsável pela mudança de homens e políticas: o Imperador.

Em termos analíticos, o regime funcionava como um sistema político extramente censitário: votava apenas um cidadão. Qualificado justamente porque não era beneficiário de qualquer gabinete, não tinha interesse pessoal em qualquer política e exercia tal poder de acordo com condições aceitáveis por todos os envolvidos: haveria sucessão no poder e haveria liberdade de expressão. Pedro II jamais permitiu que uma facção ou partido se perpetuasse no poder, criando com suas atribuições constitucionais justamente os efeitos práticos da competição política: oposição organizada, respeito pelas instituições parlamentares, identidades partidárias.

Com o uso dessa perspectiva conceitual, torna-se muito mais fácil entender a diferença, em termos de estabilidade política, entre o período imperial e o republicano. O primeiro possuía um mecanismo endógeno e consensual de sucessão no poder; o segundo, não. Vivia de revoluções, golpes e mudanças constitucionais. E nem adianta sugerir que o Brasil do século XIX era uma sociedade menos complexa. Nossos vizinhos também eram e conheceram décadas de caos e turbulências. Os Estados Unidos, nação democrática, rasgou-se ao meio em uma guerra civil que consumiu centenas de milhares de mortos. A França viveu décadas sob governo napoleônico.

Curiosamente, o único regime a que o brasileiro se pode comparar era o britânico, que, ao longo do mesmo século XIX, conduzia reformas eleitorais com o objetivo de garantir substância democrática ao seu parlamentarismo. A Reforma Eleitoral de 1867, por exemplo, fez o eleitorado saltar de cerca de um a cinco milhões de homens adultos. Na eleição de 1868, os liberais tiveram cerca de 1 milhão 430 mil votos (62%); os conservadores, pouco mais de 900 mil (38%). Como vimos, na eleição de 1872, no Brasil, houve mais de 1 milhão de eleitores.

Esse modelo sugere também duas razões decisivas para a queda da Monarquia.

Caiu porque a reforma eleitoral de 1881 simplesmente cortou os laços do sistema partidário com a base do eleitorado. Subitamente, o povo não mais votava, nem que fosse para vender o seu sufrágio ao potentado local.

Caiu porque o Monarca teria abandonado uma das bases de sua atuação política: a imparcialidade substantiva. O discreto apoio ao fim do trabalho escravo retirou da família imperial a condição de árbitro dos partidos. O apoio do eleitorado urbano ao posicionamento do Imperador só agravou essa realidade. A biografia de Pedro II ganha duplamente. Sua habilidade produziu 49 anos de estabilidade constitucional, período ainda não alcançado por qualquer texto republicano. O sacrifício deliberado de sua posição institucional ajudou a libertar os escravos.

4 comentários:

  1. Usei em três disciplinas de História o volume conjunto (com A construção da ordem e O Teatro de Sombras). Os alunos só queriam saber de comentar a grande desgraça dos escravos e a injustiça social, o elitismo... Tudo isso é verdade, mas acho que quase nenhum entendeu a lógica eminentemente razoável do sistema político imperial. Talvez a história das mentalidades seja mais atraente......

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  2. A terrível desgraça dos escravos africanos durava já trezentos anos, estendia-se da Virgínia ao Rio Grande do Sul, do Mato Grosso às costas da Índia. Sobreviveu na África até o século XX. Eu pergunto: quantos regimes políticos diferentes existiram sobre o escravismo? Será que alunos de ciências sociais não sabem distinguir constantes de variáveis?

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  3. Os alunos eram de História, e lá o pessoal curtia essa coisa de gênero, identidade repressão, Foucault, Certeau, sabe como é que é...

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  4. É quase uma doença profissional, nos dias que vão.

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