sábado, 16 de maio de 2009

25 de agosto de 1838

Estamos na discussão da Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834. As metáforas políticas expostas nos termos "interpretação" e "ato adicional" eram necessárias para ocultar a realidade: duas profundas revisões constitucionais em pleno governo regencial, sem condições de contar, portanto, com a influência do Imperador menino, D. Pedro II. Um real governo parlamentar como jamais houve novamente no Brasil, nem em 1961-1962, onde a sombra do presidente da República pesava sobre a conjuntura.

O Ato Adicional dera aos liberais sua versão do sonho federalista - autonomia para as assembléias provinciais -, mas o gênio que saiu da garrafa era bem diferente do sonho: caos, desgoverno e rebeliões provinciais. Na defensiva, os liberais lutavam agora, com os meios à disposição da obstrução parlamentar, contra a Lei de Interpretação, uma forma elegante e brasileira de desdizer o que havia sido dito em 1834. Como sempre, os eternos saquaremas brasileiros usavam a promessa de ordem para adiantar todos os tipos de agenda política. Por isso, a necessidade de elegância. A interpretação leria muito mais do que a letra da Constituição de 1824. Paulino oferece sua versão para o caos legislativo em curso:

"E, firmadas nessa inteligência não somente essas assembléias provinciais legislaram sobre a polícia judiciária, alterando muitas disposições do código de processo, como também tomaram a iniciativa sobre objetos e posturas policiais, tomando outras relativas a um só município, extensivas a outras localidades. Esta opinião se acha consagrada em outro projeto de interpretação, apresentado nessa casa, pela comissão de assembléias provinciais na sessão de 1835.

Ora, quando um ou outro duvida da inteligencia de um artigo de lei, pode-se atribuir isso a um erro de inteligencia; mas quando as dúvidas se reproduzem e são adotadas por corporações como as assembléias provinciais, em muitas das quais existem ilustrações, quando inteligências diversas são apresentadas por comissões dessa Câmara, parece que alguma interpretação ao ponto duvidoso se torna necessária. Estas são as razões que teve a comissão para apresentar a interpretação constante do artigo 1 do projeto que se discute." (Anais, Sessão de 25 de agosto de 1838, pág 383).

Paulino registra como a mera confusão sobre o termo "polícia" poderia produzir "nada menos do que reconhecer-se nas assembléias provinciais a faculdade de revogar toda a quarta parte do código criminal e todas as disposições do código de processo que constituem a polícia judiciária entre nós". Ou seja, o sonho dourado de todas as elites provinciais e estaduais no Brasil: estabelecer um código penal local, redigido e interpretado ao sabor dos seus interesses. Paulino informa os deputados sobre as consequências da decisão a tomar: "A inteligência desta parte do ato adicional não importa menos do que a conservação de uma das garantias estabelecidas na Constituição do Império e no ato adicional" (Id., pág 384).

Nesse ponto do discurso emerge um tema clássico do pensamento político brasileiro: a idéia do município como a raiz da democracia e como e melhor proteção contra a tirania das elites provinciais e estaduais:

"Eu cuido que ninguém contestará a importância que têm as municipalidades no systema representativo. Estou convencido de que, sem instituições municipais, pode uma nação adotar um governo livre, mas que não pode ter o espírito da liberdade. Para mais se convencer desta opinião bastará refletir sobre a importância das municipalidades nos Estados Unidos. Considero a organização completa, regular e forte que aí têm uma das causas de sua prosperidade. Não se pode desconhecer o papel importante que fizeram as municipalidades na antiga Europa, quando essas instituições eram as únicas em que ainda existia alguma sombra de liberdade. Na antiga monarquia portuguesa, eram as câmaras a única instituição em que se encontrava alguma cousa do elemento democrático e em que tinha lugar a eleição popular (...) Ora, se se tirar das municipalidades a iniciativa sobre a polícia municipal, o que lhes resta? O ato adicional deu às assembléias provinciais a faculdade de fixas as depesas das municipalidades; e esta disposição tem sido entendida de tal forma que muitas assembléias provinciais têm, nas leis dos orçamentos municipais, posto as municipalidades em tal tutela que não podem dispor de 100 réis, sem que essa despesa seja fixada pelas respectivas assembléias." (Id. pág 384).

Tal é o paradoxo político do ato adicional, nos termos de Paulino: "A interpretação contrária à que propõe a comissão ataca, portanto, e reduz a nada uma garantia constitucional que o ato adicional consagrou e que, portanto, não podia querer destruir". Prossegue na dinâmica criada pelo Ato Adicional:

"Note-se bem que as municipalidades não se podem defender contra as usurpações das assembléias provinciais porque para isso não lhes deu o ato adicional meio algum. Não as podem também defender os presidentes das províncias porque não têm sanção sobre as leis provinciais relativas a negócios dos municípios. Nas as poderá também defender a asssembléia geral, se a interpretação dada pela comissão não for adotada, porque nesse caso essas usurpações não serão contrárias ao ato adicional". (Id. pág 385).

Tornou-se corrente na historiografia brasileira identificar a posição de Paulino e seus amigos com a mera defesa dos interesses econômicos, da escravidão, do autoritarismo. Qual seria, contudo, a posição dos seus adversários? Onde levaria a destruição da autonomia municipal, a liberdade legislativa das assembléias provinciais, a fronda dos farrapos? Levaria à liberdade individual ou ao caudilhismo? Ao fim da escravidão ou ao isolamento econômico? É a mesma pergunta que se faz hoje, à sombra das indenizações pagas aos nossos revolucionários de esquerda: queriam derrubar a ditadura para promover eleições? Para liberar as empresas e os trabalhadores do peso do estatismo?

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